1. No princípio

Da colaboração à fundação

O Brasil de 1999 era presidido por Fernando Henrique Cardoso em seu segundo mandato. O país abandonara o regime de âncora cambial, e o dólar atingia o valor de R$ 2,00. Os brasileiros tinham assistido, no ano anterior, à França acabar com o sonho do pentacampeonato de futebol – conquista que só ocorreria em 2002, no Mundial do Japão e da Coreia do Sul.

Na saúde, o Brasil passava por grandes transformações. Fazia pouco mais de uma década que a Constituição garantira a saúde como “direito do cidadão e dever do Estado” com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS). O setor de saúde brasileiro apresentava 2,96 leitos por mil habitantes.1 Existiam 1.380 operadoras médico-hospitalares ativas, número que começava a entrar em declínio após a aprovação da lei 9.656, sancionada em 1998 – movimento que se intensificou alguns anos depois, em 2001, com a criação da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).²

Nos meios de comunicação, notícias nada animadoras, como a do jornal O Estado de S. Paulo: “Ministério sabia sobre sangue infectado desde abril”.³ A matéria, publicada em maio de 1999, fez parte de uma ampla cobertura midiática sobre a contaminação de hemoderivados com os vírus HIV e da hepatite B nos anos precedentes. Outro caso que ganhou as manchetes na época foi o da falsificação e venda ilegal de medicamentos, o que expunha a fragilidade e os desafios do sistema de saúde.

Em “SUS 30 anos: Vigilância Sanitária”, os autores relatam a preocupação do período:

A tragédia radioativa de Goiânia (GO) em 1987, devido ao abandono de uma ampola de Césio anteriormente utilizada por um serviço de radioterapia; os óbitos de idosos na Clínica Santa Genoveva, em 1996, no Rio de Janeiro (RJ); de 71 pacientes de duas clínicas de hemodiálise, em Caruaru (PE), em 1996, devido à contaminação da água por algas às mortes de 85% dos bebês recém-nascidos no Hospital Infantil N. Senhora de Nazaré, em 1996, em Boa Vista (RR); os 82 registros de problemas com o uso do soro Ringer Lactato, com 32 óbitos de pacientes de hospitais da rede privada em Recife (PE), em 1997, vítimas de acidentes tromboembólicos pela contaminação de soro do laboratório Endomed®; e o caso da “pílula de farinha”, em 1998, com o anticoncepcional Microvlar®, da Schering do Brasil, principalmente em São Paulo, entre outros, marcaram a saúde pública e expressaram a fragilidade da regulação sanitária da época. Nos estados e municípios, a situação não era diferente, com estruturas acanhadas e insuficientes para o cumprimento da missão da VS [Vigilância Sanitária], prevista na legislação do SUS. A situação trazia muitos riscos à saúde e incomodava até o setor produtivo, pela incerteza e demora da ação institucional.⁴

É nesse contexto que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) foi criada, em janeiro de 1999. E, no cenário de transformação do setor de saúde durante a última década do século XX, começam as primeiras discussões sobre qualidade e segurança do paciente, o que deu origem à Organização Nacional de Acreditação (ONA).

“A história da ONA está vinculada às iniciativas do SUS nos anos 1990. São contemporâneas ONA, ANS, Anvisa. Essas entidades estão diretamente conectadas com a construção do que é hoje o SUS e as políticas nacionais de saúde, em especial os serviços de saúde”, explica Fábio Leite Gastal, vice-presidente da ONA.

As primeiras discussões

No mundo, os primeiros debates sobre os padrões de qualidade na saúde ocorreram nos Estados Unidos. Em 1910, um relatório da Universidade Johns Hopkins intitulado “Medical Education in the United States and Canada – A Report to the Carnegie Foundation for the Advancement of Teaching” evidenciou a discrepância entre os conteúdos ministrados em faculdades americanas e canadenses. Na mesma época, Ernst Codman, um dos autores do relatório, começou a discutir com um grupo de cirurgiões sobre os padrões mínimos para cirurgias e organização do ambiente hospitalar. Assim, nascia o Colégio Americano de Cirurgiões.⁵

Posteriormente, o trabalho desenvolvido por essa associação deu origem ao Programa de Padronização de Hospitais (PPH), que nasceu com o objetivo de garantir o nível de qualidade nos hospitais.

O PPH permitiu não apenas o início de uma preocupação com a qualidade dos ambientes hospitalares, mas também um meio de a elite médica americana pleitear o controle do sistema no qual seus membros atuavam, uma vez que foram os próprios médicos que estabeleceram os padrões mínimos utilizados. É nesse momento que tem início a construção de uma metodologia de padronização das atividades hospitalares, o que passou a denominar-se acreditação, um guia de orientação voltado para as estruturas dos ambientes nos quais se praticava a medicina.⁵

CAPA DO MANUAL DE PADRÕES de Acreditação para América Latina e Caribe, criado pela Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), em 1992.

MOMENTO DE ASSINATURA da Portaria 538/GM, de abril de 2001, em Brasília. Nela a Organização Nacional de Acreditação foi reconhecida como instituição competente e autorizada a operacionalizar o desenvolvimento do Processo de Acreditação Hospitalar.

ANTES DO SURGIMENTO da ONA, discussões e rodas de conversa foram organizadas por todo o Brasil, contando com a participação de figuras como Péricles Góes da Cruz, na época, membro do Programa de Garantia e Aprimoramento da Qualidade em Saúde. Hoje, Péricles Góes da Cruz é superintendente técnico da ONA.

Com o passar dos anos, em 1950, o PPH já tinha avaliado e aprovado 3.290 hospitais. O programa atraiu a atenção da Associação Médica Canadense, e em 1951 estava criada a Joint Commission on Accreditation of Hospitals (JCAH), fruto da união entre o Colégio Americano de Cirurgiões, o Colégio Americano de Médicos, a Associação Americana de Hospitais, a Associação Médica Americana e a Associação Médica Canadense. Organização independente e sem fins lucrativos, a JCAH visava oferecer e desenvolver o processo de acreditação voluntária em hospitais e, posteriormente, nos diversos ambientes voltados à saúde.

No final dos anos 1950, a Associação Médica Canadense rompe com a JCAH e cria sua própria agência acreditadora. Já nos anos 1990, a JCAH cria um braço internacional, a JCI. Além da acreditação americana e canadense, na Austrália e na Inglaterra também se desenvolveram padrões nos anos 1970. Em alguns países da Europa, como Espanha e França, a introdução de metodologias de acreditação ocorrem nos anos 1980.5 É também nesse período que é fundada a International Society for Quality in Health Care (ISQua), em 1985, na Europa, com o objetivo de promover a qualidade e a segurança dos serviços de saúde.

Iniciativas no Brasil

Até 1999, a discussão sobre acreditação e qualidade no Brasil ocorria de maneira isolada. Aliás, poucos sabiam o que significava a palavra “acreditação”. Só a partir de 1989, a Organização Mundial de Saúde (OMS) passou a considerar a acreditação estratégica. Em 1990, ela firma um acordo com a Organização Pan–Americana de Saúde (OPAS) para elaborar o Manual de Padrões de Acreditação para América Latina e Caribe.

O manual de acreditação foi elaborado pelo médico brasileiro Humberto Novaes Moraes e pelo argentino José Maria Paganini, então dirigentes da OPAS. “Devemos destacar ambos como precursores do movimento da acreditação em saúde na América do Sul e Central”, aponta Cláudio José Allgayer, atual presidente da ONA e líder das iniciativas em Porto Alegre acerca do tema na época. O documento foi apresentado em 1992 para mais de 120 representantes de 22 países da região⁶, em conferências internacionais e para representantes de instituições públicas e privadas.

“Nessa época, ainda não existia muito foco e preocupação com implantação de processos de melhorias da qualidade dentro dos hospitais” Péricles Góes da Cruz

No Brasil, o manual foi distribuído via Federação Brasileira de Hospitais (FBH) aos associados naquele mesmo ano. Mas como recorda Péricles Góes da Cruz, que coordenava o Programa de Garantia e Aprimoramento de Qualidade em Saúde no Ministério da Saúde, a metodologia proposta pelo manual não progrediu.

“Nessa época, ainda não existia muito foco e preocupação com implantação de processos de melhorias da qualidade dentro dos hospitais”, relembra Péricles.

Apesar de a iniciativa não ter prosperado nacionalmente, posteriormente quatro diferentes grupos tornaram a acreditação objeto de estudo e passaram a adaptar alguns conceitos do manual para suas realidades. Cada equipe atuava regionalmente, estudando o assunto e propondo o aprimoramento de práticas hospitalares.

Se debruçavam sobre o assunto, em terras gaúchas, profissionais ligados à Federação dos Hospitais e Estabelecimentos de Serviços de Saúde do Rio Grande do Sul (Fehosul), ao Sebrae/RS e ao Instituto de Administração Hospitalar e Ciências da Saúde (IAHCS). No Paraná, a iniciativa coube a um grupo próximo à Secretaria Estadual de Saúde e à Federação dos Hospitais e Estabelecimentos de Serviço de Saúde no Estado do Paraná (Fehospar). Em São Paulo, uniram-se em torno do tema membros da Associação Paulista de Medicina (APM) e do Conselho Regional de Medicina (Cremesp). No Rio de Janeiro, por sua vez, as discussões foram lideradas por profissionais de saúde vinculados ao Consórcio Brasileiro de Acreditação (CBA) e à Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).

Enquanto isso, no Ministério da Saúde, as discussões sobre a qualidade ganharam novos contornos em 1995, quando foi criado o Programa de Garantia e Aprimoramento da Qualidade em Saúde, no qual os modelos de acreditação do mundo começaram a ser discutidos. Posteriormente, quando assume o cargo de ministro, Carlos Albuquerque convida para ser consultor Humberto Novaes, um dos autores do manual da OPAS. Sabendo das atividades isoladas no Rio Grande do Sul, Paraná, São Paulo e Rio de Janeiro, o ministro resolveu reunir as equipes e propor um manual de acreditação único, com o intuito de padronizar as iniciativas regionais em um projeto nacional.

“O Ministério da Saúde pediu para que esses quatro grupos abandonassem o que estavam fazendo e ajudassem a criar um manual de acreditação nacional”, recorda Antonio Quinto Neto, que fez parte do grupo gaúcho.

Baseado no manual original da OPAS, nas metodologias internacionais existentes e na experiência e no trabalho dos quatro grupos regionais, elaborou-se o Manual Brasileiro de Acreditação de Hospitais, em 1998. O documento nacional foi testado em 17 hospitais Brasil afora.⁶ Foram eles:

Região Norte:

  • Hospital Guadalupe (PA)
  • Benemérita Sociedade Portuguesa de Beneficência do Pará (PA)

Região Centro-Oeste:

  • Hospital São Francisco de Assis (GO)
  • Hospital Regional de Taguatinga (DF)

Região Nordeste:

  • Hospital Geral de Fortaleza (CE)
  • Clínica Antônio Prudente (CE)
  • Hospital Evangélico da Bahia (BA)
  • Hospital São Rafael (BA)

Região Sudeste:

  • Hospital Universitário Pedro Ernesto (RJ)
  • Hospital de Ipanema (RJ)
  • Fundação Municipal de Ensino Superior de Marília (SP)
  • Hospital Sírio-Libanês (SP)

Região Sul:

  • Hospital de Clínicas de Porto Alegre (RS)
  • Hospital Independência (RS)
  • Hospital Santa Casa de Londrina (PR)
  • Hospital e Maternidade Angelina Caron (PR)
  • Hospital Jaraguá (SC)

Após os testes, o Ministério da Saúde entendeu que existia a necessidade não apenas de ter o manual, como também desenvolver um sistema brasileiro de acreditação, que precisaria ser gerido por uma instituição criada para esse fim. Nascia, assim, a Organização Nacional de Acreditação (ONA), em 1o de junho de 1999.

“A ideia básica era de que a organização não recebesse direcionamento de entidades específicas. Então, foi criado um Conselho de Administração plural, com representantes de entidades compradoras de serviços de saúde, prestadoras de serviços de saúde e governamentais”, relembra Cruz, atual superintendente técnico da ONA.

Fizeram parte da fundação da ONA as seguintes entidades:

  • Associação Brasileira de Hospitais Universitários (Abrahue)
  • Confederação Nacional de Saúde (CNS)
  • Federação Brasileira de Hospitais (FBH)
  • Associação Brasileira de Medicina de Grupo (Abramge)
  • Associação Brasileira de Autogestão em Saúde
  • Federação Nacional de Seguros Privados e Capitalização
  • Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde (Conass)
  • Confederação das Unimed

Em 2001, portaria do Ministério da Saúde reconheceu as atribuições da Organização Nacional de Acreditação.

ATRIBUIÇÕES DA ONA  foram reconhecidas em portaria do Ministério da Saúde.

ASSINATURA DO PROTOCOLO de Intenções firmado pela União Federal, representada pelo Ministério da Saúde, as entidades prestadoras e recebedoras privadas de serviços de saúde, em 15.dez.1998, em Brasília. O objetivo era alinhar a qualidade hospitalar no Brasil.

À ÉPOCA MINISTRO DA SAÚDE, José Serra participa de roda de conversa sobre Qualidade Hospitalar. A seu lado está o Luiz Plínio Moraes de Toledo, presidente da ONA.

A ORGANIZAÇÃO NACIONAL de Acreditação foi fundada com a participação de entidades de saúde diversas, que dialogaram e participaram de debates e discussões. Na foto, encontram-se os seguintes líderes, com seus respectivos cargos à época: Fábio Leite Gastal, superintendente da ONA, Luiz Plínio Moraes de Toledo, presidente da ONA, Renilson Rehem Sousa, secretário de Assistência à Saúde do Ministério da Saúde.

¹ IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas. Séries Históricas e Estatísticas: leitos por mil habitantes. Disponível em <https://seriesestatisticas.ibge.gov.br/series.aspx?vcodigo=MS33>
² AGÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE SUPLEMENTAR. Caderno de Informação da Saúde Suplementar: beneficiários, operadoras e planos. – Ano 1 (mar. 2006). Dados eletrônicos. Rio de Janeiro: ANS, 2006.
³ WEBER, Demétrio. Ministério sabia sobre sangue infectado desde abril. O Estado de S. Paulo, São Paulo. 15 de maio de 1999.
⁴ SILVA, José Agenor Alvares; COSTA, Ediná Alves; LUCCHESE, Geraldo. SUS 30 anos: Vigilância Sanitária. Ciênc. saúde coletiva, vol.23, no.6. Rio de Janeiro, 2018, p. 1955. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-81232018000601953&script=sci_arttext>.
⁵ FORTES, Maria Thereza Ribeiro. Acreditação no Brasil: seus sentidos e significados na organização do sistema de saúde. Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Rio de Janeiro, 2013. Disponível em: <https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/icict/7666/2/0000018.pdf>.
⁶ NOVAES, Humberto Moraes de. História da acreditação hospitalar na América Latina – O caso Brasil. V.12 n.14. 2015. Disponível em: <https://revistas.face.ufmg.br/index.php/rahis/article/view/2693>.

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